O que é pobreza menstrual, problema que afeta milhares de brasileiras


A pobreza menstrual é definida pela falta de informação e produtos necessários durante o período da menstruação. O principal problema é o fato do tema não ser discutido abertamente. De acordo com o Levantamento Nacional Inédito, coordenado pela antropóloga Mirian Goldemberg, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma em cada quatro jovens já faltou à aula por não poder comprar absorvente.

Os dados foram baseados em entrevistas com mulheres de todo o Brasil entre 16 e 29 anos para entender os impactos da pobreza menstrual. Segundo o Levantamento, uma mulher gasta cerca de R$ 3 mil a R$ 8 mil com absorventes ao longo da vida – lembrando que os produtos de higiene menstrual são colocados como cosméticos de luxo e tributados desta forma.

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Pobreza menstrual
Pobreza menstrual é um problema de saúde pública. Imagem: Shutterstock

Pela disparidade tão grande entre a sociedade que sofre com insuficiência de estrutura e quem não menstrua, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu em 2014 que o direito à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos. 

Nessa linha de raciocínio, a Escócia foi o primeiro país a elaborar um plano de distribuição gratuita de absorventes. A Plan International do Reino Unido é uma instituição não governamental humanitária que promove programas e projetos centrados em crianças e adolescentes. De acordo com eles, estima-se que 49% das meninas perderam um dia inteiro de aula por causa da menstruação, das quais 59% inventaram uma mentira ou uma desculpa alternativa. 

Além disso, uma pesquisa de 2018 promovida pela marca de absorventes Sempre Livre apontou que 22% das meninas de 12 a 14 anos no Brasil não têm sequer acesso a produtos higiênicos adequados durante o período menstrual. A situação se agrava entre adolescentes de 15 a 17 anos, subindo para  26%. 

O que é pobreza menstrual? 

Pobreza menstrual é o difícil acesso aos absorventes e kits de higiene com impacto na vida produtiva, na autoestima e também na inserção das pessoas que menstruam no mercado de trabalho. 

Victória Dezembro, fundadora do Projeto Luna – ONG focada em reduzir a pobreza menstrual – contextualiza que há uma perda enorme de geração de riqueza no mundo quando meninas não conseguem estudar ou mulheres não podem trabalhar: “No limite, são médicas, engenheiras e professoras que a sociedade deixa de ter a contribuição.”

Dezembro argumenta que a pobreza menstrual não é apenas “um problema de mulher”, mas uma questão de saúde pública, de evasão escolar, de grande impacto econômico e direitos humanos. “Para se ter noção do tamanho do problema, em todo o mundo, todos os dias, mais de 800 milhões de pessoas estão menstruando. No mínimo, 500 milhões dessas pessoas vivem em pobreza menstrual”, afirma.

Kit de pobreza menstrual do Projeto Luna
Kit de higiene íntima do Projeto Luna. Imagem: Projeto Luna

Ou seja, a pobreza menstrual é quando não há informações necessárias sobre período do ciclo reprodutivo, acesso limitado a produtos de higiene menstrual e a falta de infraestrutura sanitária de maneira adequada em casa e na escola. 

“São aquelas pessoas que não têm como comprar produtos de higiene pessoal, principalmente os absorventes, porque são muito caros. São milhares de pessoas que não tem acesso”, explica Natália Fiusa Righetti, líder do clube Girl Up SP. “Sem contar a falta de acesso ao saneamento básico e à educação. Por mais que a menstruação ocorra com 30% da população”, complementa.

Voluntárias do Projeto Luna. Imagem: Projeto Luna
Voluntárias do Projeto Luna. Imagem: Projeto Luna

Menstruação pela ótica médica

De acordo com a ginecologista Larissa Cassiano, as pessoas que não possuem higiene básica por falta de recursos acabam desencadeando doenças e problemas de saúde, podendo até causar infertilidade. 

Durante seu período final de formação, uma paciente a marcou. A mulher havia chegado no hospital em uma situação muito precária. “Ela não tinha calcinha e pelo absorvente ser muito grande, não tinha como usar”, conta. 

Segundo a médica, a sensação de insuficiência por não poder ajudar mais – além do atendimento e doações de voluntários – é muito grande. “Você pode até fornecer um absorvente e uma roupa ou outra, mas e no mês que vem?”, comenta sobre a dificuldade por ser algo cíclico. 

Já em presidiárias, Cassiano se deparou com pessoas que utilizaram papel higiênico, algodão e jornal. “O problema disso é que os materiais vão se soltando dentro do corpo e é muito difícil de retirar, se tornando um foco de infecção”, diz. Além disso, ela comenta que os protocolos de atendimento para pessoas trans ainda é muito inicial e prejudica no processo, sendo algo que precisa mudar “urgentemente”. 

Busca por recursos 

A escassez de recursos fez com que algumas pessoas se movimentassem para arrecadar kits de higiene e distribuir para quem precisasse. Bruna Vendrasco é estudante de medicina e se interessou pelo tema ao se deparar com a complexidade do cenário. Tudo começou após um convite de sua coordenadora de voluntariado para realizar uma ação na comunidade do Vietnã, na zona sul de São Paulo. 

Durante a ação, Vendrasco e outros voluntários abordaram a educação em saúde com o tema da pobreza menstrual, violência contra mulher e entrega de kits de higiene. “A ausência de absorventes nos kits que seriam entregues me chamou a atenção, já que eles seriam distribuídos para mulheres. Todo mundo doa arroz e feijão, mas poucos se lembram de itens de higiene de uso diário como os absorventes”, relembra.

Bruna Vendrasco durante ação de solidariedade contra a pobreza menstrual
Bruna Vendrasco durante ação de solidariedade contra a pobreza menstrual. Imagem: Bruna Vendrasco

Para tentar mudar o cenário aos poucos, a estudante desenvolveu uma ação para arrecadar absorventes. Com grande aceitação da ideia, o projeto ampliou: “A partir de agora as doações podem ser feitas de forma contínua, o ano todo pelo PIX desenvolvido somente para essa campanha. Afinal, mulheres menstruam o ano inteiro.”

Todos os absorventes são entregues por meio da Cruz Vermelha Brasileira de São Paulo para população vulnerável em situação de rua ou através de ações em comunidades. Nesses encontros, é realizado educação em saúde sobre higiene íntima, ciclo menstrual, violência e feminicídio.  

Vendrasco não está sozinha nessa. Há diversas instituições e ONGs que atuam para minimizar os problemas da pobreza menstrual no Brasil. O próprio Projeto Luna é prova disso, o qual Dezembro criou para distribuir kits de higiene, desmistificar o assunto e educar. 

Outro exemplo é o clube Girl Up. Liderado em São Paulo por Nathália Righetti, o movimento surgiu em 2010 e possui o objetivo de conectar e garantir direitos. “É um projeto de meninas para meninas”, afirma. 

De acordo com Righetti, as cestas básicas distribuídas no momento da pandemia não possuíam absorventes e perceberam que seria importante incluir o item através de doações. “Não é justo com essas pessoas que estão em situação de pobreza menstrual que dependam de doações, é preciso que isso seja entendido como lei”, argumenta. 

Encarceradas 

A pobreza menstrual afeta desde pessoas jovens na escola até a cadeia penitenciária. Por mais que a Lei de Execução Penal prevê que o direito à saúde integral deva ser garantido pelo Estado na forma de atendimento médico, farmacêutico e odontológico, nem sempre isso ocorre. Por lei, as mulheres detentas deveriam ter acesso aos itens de higiene básica. 

Nesse cenário, muitas mulheres (e pessoas que menstruam) chegam a utilizar miolos de pão, jornais, papel higiênico ou tecidos na tentativa de estancar os fluxos. Isso gera riscos para a saúde, podendo causar infecções como cistite e candidíase. Quando o sistema público não oferece o básico, as detentas ficam dependentes da ajuda de familiares e amigos durante a hora da visita.

Cadeia
Imagem ilustrativa. Reprodução: Royalty Free Photo

Abandono é a palavra que se encaixa no cárcere. Os dados de um levantamento feito em 2018 pelo Infopen, o sistema de informações do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), indicam que a média de visitas foi de 5,9 por presidiária no primeiro semestre de 2016. Será que é o suficiente para evitar o problema? 

“Adaptações são feitas, mas ainda muito longe do ideal para fornecer dignidade e, principalmente, para fornecer uma saúde feminina adequada”, explica Bruna Vendrasco.

“A grande maioria das mulheres buscam o que tem disponível para o uso: algodão, camisetas, meias, folhas de revistas e jornais são os mais comuns, mas já ouvi relatos de que transformaram miolo de pão e um pouco da espuma do próprio colchão em absorventes internos para suprir sua necessidade”, conta Vendrasco. Na cadeia, absorvente é item de luxo.

Questão de direito 

Já que pobreza menstrual é questão de saúde pública, por que o governo ainda não garantiu os direitos das pessoas que menstruam? Em Brasília circulam dois projetos de lei na Câmara dos Deputados: um que valida a pobreza menstrual como um fator crucial para a evasão escolar de meninas em situação de vulnerabilidade e outro que visa distribuir absorventes gratuitos em espaços públicos. 

Em setembro de 2019, a deputada federal Marília Arraes (PT-PE) elaborou o projeto e aguarda até hoje um parecer da Comissão de Educação (CE). Ela também é autora da outra proposta de março de 2020, para distribuir absorventes gratuitos em locais públicos. A tentativa gerou reações negativas de outros parlamentares, como o ex-ministro Abraham Weintraub, por exemplo, que era titular da Educação na época e zombou do assunto no Twitter.

Os políticos contrários ao projeto de lei questionam os custos para aquisição e distribuição de absorventes. Weintraub, inclusive, escreveu nas redes sociais que o valor seria de R$ 5 bilhões para colocar o plano em prática. Em resposta, Tábata Amaral (PSB) informou que a estimativa é de que sejam necessários aproximadamente R$ 119 milhões, baseado em um cenário de acesso aos itens para mulheres de 10 a 50 anos e com renda de até um salário mínimo.

Outro ponto é a diferença do tratamento entre a distribuição de camisinhas e a de absorventes, sendo um reflexo da desigualdade de gênero. Desde 1994, a distribuição de preservativos acontece no Brasil. Por outro lado, o projeto de Tábata Amaral foi desenvolvido apenas em 2020. 

Para ajudar, o projeto Girl Up se mobiliza em diversos estados para que o combate à pobreza menstrual seja de fato uma lei. “Aprovamos o projeto de lei de combate a pobreza menstrual no Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Distrito Federal. Em vários outros estados, o projeto está tramitando, como São Paulo”, diz Righetti.

Não é só mulher que menstrua 

A pluralidade de gêneros e corpos também é um tabu no Brasil. Se pouco existe a compreensão da menstruação em mulheres, imagina em pessoas de outros gêneros. A invisibilização da questão faz com que se torne mais difícil a garantia de direitos, como o acesso à saúde. 

“Não existe diferença entre a menstruação de mulheres, homens trans ou outras pessoas que mostram. O que pode acontecer é que homens trans que fazem medicação hormonal, os fluxos podem ficar irregulares ou suspenso”, explica Larissa Cassiano, enfatizando que por isso é falado ‘pessoas que menstruam’, por não haver diferença natural do fluxo. 

Victoria Dezembro comenta que “se a menstruação, que é fortemente atrelada ao feminino, é um tabu para a grande maioria das mulheres, ela é ainda mais estigmatizada quando falamos de homens trans, pessoas transmasculinas, pessoas intersexo ou até mesmo pessoas que não se identificam com nenhum gênero.”

Isso porque na nossa sociedade a identificação da menstruação é feita com o símbolo de feminilidade. Por exemplo, os artigos menstruais utilizam em sua comunicação apenas signos femininos e, nas escolas, quando o tópico da menstruação é abordado, ele é dirigido apenas às meninas. Portanto, acaba marginalizando os outros corpos que menstruam, além de reforçar a pobreza menstrual.

Homens trans são ainda mais marginalizados quando o assunto é pobreza menstrual. Imagem: Shutterstock
Homens trans são ainda mais marginalizados quando o assunto é pobreza menstrual. Imagem: Shutterstock

Jao Bubiz é um comediante de 28 anos e comenta que muitas pessoas ainda não entendem que homens trans menstruam, sendo preciso ser algo mais abordado. “A maioria dos homens trans tem dificuldade de entender que a gravidez é algo que pode acontecer porque nós temos útero e temos todas as condições”, diz. 

Para ele, é uma questão que muda de pessoa para pessoa, mas que enquanto for um tabu, seguirá sendo um dificuldade, principalmente porque “não existe corpo certo ou errado, existe corpo trans”. 

Nessa mesma linha, Caê Vasconcelos, jornalista de 30 anos, compartilha que a sua relação com a menstruação sempre foi complicada, ainda mais com a quantidade de cólicas fortes que ocorrem. “Muitas mulheres cisgêneras não menstruam, por algum problema de saúde que as fez retirar o útero, mulheres trans e travestis não menstruam, e nós homens trans menstruamos. É uma questão de quem tem útero, não necessariamente vagina”, enfatiza. 

Caê já realizou a sua transição e atualmente não menstrua mais. Validando a complexidade do assunto, ele relembra o episódio em que a autora da saga Harry Potter, J.K. Rowling, criticou a frase “pessoas menstruam”. Sua fala feriu diversas pessoas de outros gêneros além do feminino que menstruam, ainda mais aqueles que são fãs, como o jornalista. 

Por fim, Caê afirma que “a medicina não está pronta, basta pesquisar e respeitar o gênero, o mundo não está pronto mas não dá para esperar, precise que mude urgentemente”. 

Dados mundiais da pobreza menstrual

O cenário complicado acerca da menstruação está bem longe de afetar só o nosso país. Segundo Victoria Dezembro, há diversos dados que indicam uma falta de preparo mundial para isso: 

  • Um estudo recente dos EUA (“State of the Period”, 2019) apontou que uma em cada cinco adolescentes no país teve dificuldades ou sequer conseguiu comprar produtos de higiene menstrual e mais de 84% das estudantes americanas perderam, ou conhecem alguém que perdeu aulas porque não tinha acesso a esses itens;
  • No Canadá, o Plan International Canada relatou que em um dos países com a maior renda per capita do mundo, uma em cada três mulheres com menos de 25 anos não têm condições de comprar artigos menstruais;
  •  No Reino Unido, a instituição Plan International UK registrou em 2017 que quase metade das meninas (48%) sentem vergonha quando estão menstruadas; 
  • Na Índia, o conceito de menstruação é desconhecido para 71% das meninas até a menarca, segundo DASRA em 2015;
  • No Níger e em Burkina Faso, a UNICEF revelou que em 2013, as mulheres foram proibidas de rezar ou frequentar mesquitas durante o período menstrual;
  • Em 2016, na Colômbia, 45% das meninas desconhecem a origem do sangue menstrual e 20% o considera sujo, disse a UNICEF
  • 10% das meninas de 15 anos no Quênia se prostituem para conseguir dinheiro para comprar absorventes.

Inclusive, um grande exemplo que demonstra os efeitos da má higiene menstrual na saúde é a Índia, em que apenas 12% da sua população, de 355 milhões de mulheres em idade menstrual, consegue ter acesso a absorventes. Segundo a BBC Magazine, cerca de 70% de todas as doenças reprodutivas são decorrentes de higiene menstrual precária. O alto custo dos absorventes junto com o tabu associado à menstruação, causam práticas de improviso na absorção do fluxo menstrual e no crescimento de um problema que inviabiliza a saúde de milhares de pessoas. 

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