Eram 8h15 do dia 6 de agosto de 1945, em Hiroshima, no Japão, quando uma aeronave americana Boeing B-29 chamada “Enola Gay” jogou uma bomba de urânio de 4,4 toneladas apelidada de “Little Boy” sobre a cidade. Cerca de 70 mil pessoas morreram instantaneamente pela explosão, que causou um raio de destruição de cerca de 1,3 quilômetro. Até 1950, o número de vítimas aumentaria para 200 mil, em decorrência das queimaduras fatais e doenças causadas pela radiação.
Mas essa história começa alguns anos antes. Em 1942, o governo dos Estados Unidos iniciou o “Projeto Y”, que projetaria e construiria uma arma para encerrar a Segunda Guerra Mundial, que vinha devastando a Europa e o leste asiático desde 1939. Los Alamos, no Novo México, foi o local escolhido para receber parte do grupo do Projeto Manhattan que projetaria uma bomba de fissão atômica.
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Em 16 de julho de 1945, os cientistas conduziram um teste que comprovaria a viabilidade do conceito. Às 5h29m45s da manhã, os detonadores acenderam explosivos em torno de um grande globo de aço, preso a uma torre de 30 metros de altura. A explosão provocou uma reação em cadeia que resultou na fissão de um núcleo de plutônio, liberando energia equivalente à força explosiva de 21 mil toneladas (21 quilotons) de TNT, mais do que o previsto.
Um clarão ofuscante e um som estrondoso antecederam uma nuvem em forma de cogumelo com 11 quilômetros de altura. O teste “Trinity” inaugurou a chamada Era Atômica, uma corrida tecnológica entre os Estados Unidos e a União Soviética, que teve resultados terríveis, mas ao mesmo tempo desencadeou um avanço como nunca visto na ciência e na tecnologia.
“Se bombas atômicas forem adicionadas como novas armas aos arsenais de um mundo em guerra, ou aos arsenais de nações que se preparam para a guerra, chegará o tempo em que a humanidade amaldiçoará os nomes de Los Alamos e Hiroshima”, afirmou em 1945 o cientista-chefe do Projeto Manhattan, Robert Oppenheimer. Depois da Segunda Guerra, o pesquisador tornou-se um defensor de controles mais rígidos para a produção de armas atômicas. “Os povos deste mundo devem se unir ou perecerão”, alertou Oppenheimer.
Guerra e paz
Para além do seu poder destrutivo, a energia nuclear trouxe desenvolvimento para a medicina. A historiadora da Universidade de Princeton, Angela Creager, passou mais de uma década pesquisando os primeiros esforços para transformar o conhecimento e a tecnologia desenvolvidos para o Projeto Manhattan em usos pacíficos. Sua pesquisa culminou no livro “Life Atomic: Radioisotopes in Science and Medicine“, que detalha como esse esforço tornou possíveis avanços importantes.
“Geralmente, quando pessoas comuns e estudiosos pensam no legado do Projeto Manhattan, lembram de como a física e a engenharia foram usadas militarmente. Pensamos em um legado destrutivo, na corrida armamentista, na Guerra Fria”, afirma Creager. “Parte do que descobri foi que a energia atômica tinha tanto legado em alguns dos campos que consideramos pacíficos quanto nos usos militares”.
Tratamentos para câncer, especialmente usando cobalto-60; testes de diagnóstico que ainda são amplamente utilizados; estudos sobre o funcionamento das vias metabólicas, como a da fotossíntese; um melhor entendimento sobre como o corpo humano absorve e utiliza substâncias como o ferro e até pesquisas sobre matéria e energia passam através de componentes orgânicos e inorgânicos no meio ambiente. Esses e outros avanços foram possibilitados pela disponibilidade de radioisótopos de átomos estáveis.
Da mesma forma que se acreditou que a bomba atômica tornaria obsoletos todos os explosivos convencionais, nos anos 1950 acreditava-se que usinas nucleares substituiriam fontes de energia como carvão e petróleo. Desastres como os que aconteceram em Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, e em Fukushima, no Japão, em 2011, causaram sérios abalos nessa popularidade.
Os subúrbios de Chernobyl ainda apresentam índices elevados de radiação. Imagem: iStock
Ainda assim, Estados Unidos, França, China, Rússia, Coreia do Sul, Canadá, Ucrânia, Japão, Suécia, Espanha, Reino Unido, Bélgica e Índia estão entre os maiores consumidores de energia nuclear atualmente, operando mais de 300 reatores. Na França, por exemplo, 70% da energia consumida vem da fissão nuclear, enquanto nos EUA esse índice é de quase 20%, de acordo com a Agência Internacional de Energia Atômica da ONU.
A Era Atômica influenciou também a cultura. O filme japonês “Godzilla”, lançado apenas nove anos depois do ataque norte-americano, usa um monstro gigante como metáfora para o horror causado pela bomba. A disputa entre EUA e União Soviética é tema da comédia “Dr. Fantástico”, de Stanley Kubrick, cujo título original em inglês possui um subtítulo que entrega a crítica do enredo: “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (Dr. Strangelove ou: Como eu aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba).
Super-heróis surgiram a partir do poder do átomo. Peter Parker foi picado por uma aranha radioativa e se tornou o Homem-Aranha, enquanto Bruce Banner foi atingido por raios gamas e se transforma no Incrível Hulk quando perde o controle. Até a moda foi influenciada, quando uma peça de roupa de banho recém-criada recebeu o nome de um dos locais de testes atômicos, o Atol de Bikini.
E Hiroshima?
A cidade de Hiroshima se reconstruiu das cinzas, como promotora da paz e do desarmamento nuclear. Todos os anos, no dia 6 de agosto, a “Cidade da Paz” promove eventos para lembrar ao mundo o quão terrível a energia atômica pode ser, se usada incorretamente.
Em 2020 e 2021, apesar da pandemia, isso não foi diferente — se uma bomba atômica não os parou, porque a pandemia da Covid-19 lhes tiraria o ímpeto? As cerimônias foram transmitidas online, direto do Parque Memorial da Paz, com visitas virtuais e testemunhos de sobreviventes da bomba atômica.
“Temos que levar a mensagem de Hiroshima para pessoas em todo o mundo que não sabem o que realmente acontece se alguém usa uma arma nuclear”, afirma Reiko Inaba, tesoureira do grupo Intérpretes para a Paz de Hiroshima, fundado em 1984 para fornecer visitas guiadas e serviços de tradução para ativistas, jornalistas e outros visitantes da cidade.
O Parque Memorial da Paz de Hiroshima fica localizado no antigo centro comercial e residencial da cidade. Imagem: Geoff Whalan/Flickr
Os Jogos Olímpicos de Tóquio, entretanto, causaram um certo ressentimento, devido à recusa dos organizadores em incluir na programação um minuto de silêncio e oração no momento do ataque, em memória dos mortos e feridos e em defesa da paz mundial.
O chefe do Comitê Olímpico Internacional, Thomas Bach, fez uma visita à Hiroshima antes do início dos jogos, para marcar o início de uma “trégua Olímpica” que pede que conflitos no mundo todo cessem para garantir a passagem segura de atletas. Posteriormente, em uma carta, Bach afirmou que a cerimônia de encerramento dos jogos terá tempo para “homenagear as vítimas de tragédias ao longo da história”
Cicatrizes eternas
Mesmo tantas décadas depois, Hiroshima ainda guarda cicatrizes da explosão da bomba atômica. Um estudo de 2019 estimou que 2,5% de toda a areia das praias ao redor de Hiroshima é composta de partículas vítreas que um dia foram os edifícios da cidade. Com a explosão nuclear, aço e concreto foram varridos e fundidos pelo calor, antes de se resfriarem e caírem no solo como uma chuva fina de cacos de vidro.
Com a pandemia do novo coronavírus, o Museu Memorial da Paz de Hiroshima tem se dedicado a publicar no YouTube parte do seu acervo de imagens e testemunhos. O canal já possui quase 500 vídeos, e os administradores planejam adicionar legendas em inglês para melhorar a acessibilidade internacional.
“O coronavírus é uma coisa ruim e triste, mas também nos trouxe coisas novas”, acredita Tomoko Watanabe, diretora-executiva da ANT-Hiroshima, um grupo local voltado para a educação fundado em 1989. “Podemos obter muita inspiração da situação do coronavírus sobre como mudar nossa sociedade, nossa economia e nossos relacionamentos uns com os outros”, diz ela. “O planeta inteiro enfrenta a mesma situação — não apenas com a pandemia, mas também com as mudanças climáticas e a guerra nuclear”.
Via: Japan Times / Science Alert / Los Alamos National Laboratory / Princeton University / Inside Science